novo álbum de Cacá Machado
Leia Sibilina por Francisco Bosco
escute ou compre online letra e ficha técnicaSHOW DE LANÇAMENTO
10 E 11 DE OUTUBRO DE 2018
NO SESC 24 DE MAIO
Penetrável algodão, por Francisco Bosco
Antes de ler as palavras, os sons e suas relações, comecemos por ler as imagens desse Sibilina. Na capa, o rosto de Cacá Machado duplicado, cortado em cima na altura dos olhos, e embaixo de olhos fechados, a palavra "sibilina" também duplicada, mas como que refletida numa superfície espelhada. Na contracapa, o rosto de Cacá desfocado, ao fundo um edifício com luzes acesas. Dentro do encarte, o rosto de Cacá reaparece, agora envolto em fumaça.
Essas imagens antecipam e comentam, à sua maneira, a economia geral dos signos nessa obra: palavras enigmáticas, às vezes tão claras que ofuscam (como no provérbio chinês, o lugar mais escuro é bem debaixo da lâmpada), instabilidades sociais e subjetivas, arranjos inesperados, gêneros, para brincar com o termo atual, não binários (um transpartido-alto, uma marchinha boêmia delirante, um acalanto inquietante). Em suma, somos convidados a entrar no mundo de Sibilina de olhos fechados, no nevoeiro, dispostos a nos desconhecermos, guiados pelo bom Virgílio do violão de Cacá, que nos conduz em meio às formações maravilhosas de clarinetes, clarones, guitarras, baixos synth, bateria e vozes, muitas e diversas vozes.
De saída, a Sibila anuncia a divisão social do mundo num canto claro e duro ("tem um que não tem nenhum", "tem um que tem um planeta na mão"), que em seguida se transforma num canto sibilino, a um tempo apocalíptico ("uma bola de fogo", "uma chuva amarela") e redentor ("uma fala perdida no meio do sol"), entoado pela voz grave de Mateus Aleluia, dos Tincoãs (cuja voz e cujo sobrenome ecoam a ambiguidade distópica-utópica da canção). Tudo isso em um arranjo em que se destacam o clarinete e o clarone de Alê Ribeiro, que remetem aos grandes arranjos de sopro de Rogerio Duprat para algumas das grandes canções de temática social da música brasileira. "Tem um" é canção forte, de letra precisa, melodia marcante e arranjo magistral.
Em seguida, "Sibilina" introduz as palavras de Vadim Nikitin, letrista excepcional. O título, aqui, diz respeito tanto à personagem referida na canção, que "mija em pé no fogo dos pneus", "estica um coração em pó", "rasga o véu", quebrando o espelho do eu e fazendo o sujeito se desconhecer ("quem sou eu?"); quanto, tornado título do disco, um comentário geral sobre a economia semântica da maioria das letras, quase sempre esquivas, e sempre densas e inventivas, conferindo ao conjunto um patamar altíssimo de formulação.
Falando em patamar altíssimo das letras, as "canções de amor" do disco, como "Sibilina", e "Tremor essencial", lembram o álbum Cê, de Caetano Veloso, ambos tendo em comum versos sobre a experiência da instabilidade, da transformação, de um colapso extático, "tremor transcendental", "terra em transe mar", "sambem os cisnes sobre mim" ("Sibilina"). É assim também em "Tremor essencial", que começa evocando o "eu, você, nós dois", mas em que a luz suave e crepuscular da bossa nova, do sol que vai caindo no terraço à beira-mar, se transforma num núcleo incandescente, que transforma os dois amantes em Um, e em seguida o Um em dois, "nossa Pangeia/ virou geleia", o mar melancólico refletido no olhar transformado em "mar ardente", e "afunda a terra/ dissolve em nós/ os nossos nós/ profundos".
A transa do transe prossegue em "Depois do trovão". Dois perdidos num amanhecer sujo e prolixo, manhã tecida pelo palavreado galo de Vadim Nikitin, elaborado e delirante, paranomástico e surrealista, misturando Guimarães Rosa, João Cabral, Shakespeare, Billie Jean e Glauber Rocha, nas vozes complementares de Ava Rocha e Iara Rennó, tudo resultando numa extraordinária e singular marchinha boêmia, espécie de minipornopopeia do nada.
Tem ainda uma perturbadora dança debaixo da terra, em parceria de Cacá com Romulo Fróes ("Dança"). Uma "Polca" que é antes um transpartido-alto, com arranjo de guitarra pesada, clarone, baixo, bateria e percussões. Um acalanto doce, mas perturbador, em que o coro de vozes masculinas entoa uma "estrela que explode de velha" ("Olha", de Cacá com Clima). E ainda um "sambábuchka", eslavosamba de Cacá e Vadim Nikitin, misturando matriochka e orixás, violão de João Gilberto e balalaica.
Aproximando-se do fim, a Sibila volta a anunciar uma profecia, dessa vez cósmico-antropocênica: a visão do mundo-como-formigas, do chão ao céu, com suas "saúvas cadentes" e "formigueiros de luz", enquanto na terra, nós, formigas também, nos descobrimos como elas enfileirados em congestionamentos, às voltas com nossas usinas em movimento infinito ("Nós, formigas", parceria de Cacá com Guilherme Wisnik, cantada por esse último). O disco se encerra com uma canção dentro do nevoeiro, "Sob neblina", quase anagrama de "Sibilina", uma belíssima road song suspensa, antiaventura, na marcha lenta, à frente o impenetrável algodão.
Sibilina é uma obra de alta poesia cancional, em que Cacá Machado, como na foto da contracapa onde aparece desfocado, sabe tanto aparecer quanto se retirar. Ele atua como um meiocampista moderno, que distribui os passes certos, cadencia e acelera o jogo, e de vez em quando aparece para concluir. Mas sabe que seu papel é fazer brilhar o time todo. E o time brilha, todo: as guitarras de Gilberto Monte, as clarinetas e clarones de Alê Ribeiro, os baixos de Marcio Arantes, a bateria de Antonio Loureiro; todos os letristas parceiros; todos os cantores convidados.
Tem um que sabe.